VENHA VER O PÔR DO SOL Lygia Fagundes Telles PARTE 2

 - Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro... Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram. - Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. - Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano! - É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora? - Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade. Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. - Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. - Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. - Deu-lhe um rápido beijo na face. -Chega, Ricardo, quero ir embora. - Mais alguns passos... - Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! - Olhou para trás. - Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. - A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele, impelindo-a para a frente. - Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. - Sua prima também? Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza-dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus. Vocês se amaram? Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. - Enfim, não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o. - Eu gostei de você, Ricardo.' -E eu te amei.. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um - pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. - Esfriou, não? Vamos embora. - Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a ca tacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui? Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico. - Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. - E lá embaixo? - Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. - A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor. - Todas essas gavetas estão cheias? - Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta. . Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. - Vamos, Ricardo, vamos. - Você está com medo. - Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado. - A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?...


                                               CONTINUA...

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